O Modernismo na Literatura Roseana

Conto: Sorôco, sua mãe, sua filha
(Tayane Arantes Soares – Graduanda em Letras pela UFMG)
João Guimarães Rosa, escritor mineiro modernista, é reconhecido por propor uma renovação literária. Sua escrita é fundada nas camadas da oralidade, na inovação da linguagem (marcada pela influência de falares regionais e populares), na reinvenção das formas narrativas e na abordagem de temas marginalizados socialmente. Desse modo, a obra de Guimarães Rosa está conectada ao projeto estético e ético do Modernismo, o qual concedeu aos escritores o “direito de criação da fórmula”, isto é, o direito permanente à experimentação estética. O movimento também pressupõe a interiorização do Brasil, a fim de representar a cultura brasileira num nível mais profundo. Em virtude disso, a produção de Rosa situa-se à margem do processo de modernização do país, deslocando o ambiente narrativo dos grandes centros urbanos para o norte de minas, com intuito de revelar o Brasil aos brasileiros.
Nesse contexto, no conto “Sorôco, sua mãe, sua filha”, de 1961, Rosa traz à tona a “loucura”, denunciando como essa temática era estigmatizada pela sociedade da época (e ainda atualmente), e narra como as pessoas com sofrimento mental eram vistas. A história apresenta um pai viúvo, Sorôco, que se vê obrigado a internar as suas únicas companhias, sua filha e a sua mãe, num hospício em Barbacena. O conto começa com o narrador descrevendo a ferrovia e os vagões do trem que levará, para sempre, as duas mulheres. Um dos vagões chama mais atenção e é descrito da seguinte maneira:
Não era um vagão comum de passageiros, de primeira, só que mais vistoso, todo novo. A gente reparando, notava as diferenças. Assim repartido em dois, num dos cômodos as janelas sendo de grades, feito as de cadeia, para os presos (ROSA, 1961,p. 36).
Ao descrever que o vagão “não era um vagão comum de passageiros”, o conto nos remete à ideia de segregação e nos revela como as pessoas que divergiam do padrão da época eram tratadas. No mais, ao afirmar que “O trem do sertão passava às 12:45”, o narrador localiza geograficamente a história, a qual se passa em algum lugar miserável do sertão mineiro, e nos revela o princípio de interiorização modernista. No primeiro parágrafo, portanto, podemos perceber o caráter universal na obra de Rosa ao abordar a temática da loucura, e o caráter regionalista, ao especificar o local onde se passa o enredo. Com a leitura do conto, temos a sensação que a modernidade não havia chegado totalmente para as pessoas daquela região, ela era momentânea e só se fazia presente quando o trem – símbolo de inovação – buscava os “loucos” e os demais passageiros. Ficando claro como a obra de Rosa ia de encontro à modernização do Brasil na época, explicitando como tal processo não era inclusivo.
Ademais, no decorrer da narrativa, a população local se reúne à beira do trem para esperar a sua partida e, nesta ocasião, Sorôco aparece de braços dados com a mãe e a filha para embarcá-las no trem. A filha cantava uma cantiga que “não vigorava certa, nem no tom nem no se-dizer das palavras” e a mãe, vestida de preto, “batia a cabeça nos docementes”, as duas, apesar de diferentes, assemelhavam-se em seu estado mental. Em respeito ao Sorôco, as pessoas evitavam os olhares por causa dos “transmodos e despropósitos de fazer risos” das duas mulheres, pois a população sabia que àquela situação era sensível para ele. Sorôco não estava feliz em ter que mandá-las embora. No fundo, a justificativa de não serem mais adequadas à sociedade não se encaixava. No trecho a seguir é possível entender melhor como elas eram percebidas e como a “loucura” causava um estranhamento e um repúdio na comunidade:
O que os outros se diziam: que Sorôco tinha tido muita paciência. Sendo que não ia sentir falta dessas transtornadas pobrezinhas, era até um alívio. Isso não tinha cura, elas não iam voltar, nunca mais. De antes, Sorôco agüentara de repassar tantas desgraças, de morar com as duas, pelejava. Daí, com os anos, elas pioraram, ele não dava mais conta, teve de chamar ajuda, que foi preciso. Tiveram que olhar em socorro dele, determinar de dar as providências de mercê. Quem pagava tudo era o Governo, que tinha mandado o carro (ROSA, 1961, p. 37).
Logo, para não terem que lidar com a repulsa e com o medo, era mais cômodo para as pessoas “normais” isolarem socialmente as pessoas com sofrimentos mentais e, dessa forma, ficarem supostamente livres dos riscos da insanidade. Nesse viés, podemos associar o vagão para “passageiros não comuns” com a “Nau dos Insensatos”, de Foucault (1993), o qual a descreve da seguinte maneira: “E é possível que essas naus de loucos, que assombram a imaginação de toda a primeira parte da Renascença, tenham sido naus de peregrinação, navios altamente simbólicos de insanos (…)” .
Minutos antes da partida do trem, a velha se juntou à neta e as duas cantaram a canção que ninguém entendia, aquela “chirimia”, segundo o narrador. A cantiga representava para o povo “um constado de enormes diversidades desta vida, que podiam doer na gente, sem jurisprudência de motivo nem lugar, nenhum, mas pelo antes, pelo depois”. As duas mulheres lembravam a todos que eles também estavam sujeitos àquela condição e isso “doía” neles.
Por fim, o trem sai. Sorôco, que parecia achar que ficaria aliviado, sentia-se um “ser oco”, triste e desamparado, “no oco e sem beiras”, com a partida da filha e da mãe. O homem voltava para casa esquisito e “parecia que ia perder de si, parar de ser”. Ele, então, começa a cantar a mesma cantiga que a filha e a mãe estavam cantando e as pessoas ao seu redor, com dó de Sorôco, o acompanhou na cantoria. Naquele momento, todos estavam “levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade”, e a canção das “loucas”, naquele instante, passou a funcionar como um ponto de união daquela comunidade.
Bibliografia:
FOUCAULT, Michel. História da loucura. 3.ed. São Paulo: Perspectiva, 1993 (1972).
ROSA, João Guimarães. Sorôco, sua mãe, sua filha. In: —–. Primeiras estórias. 5. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969.